Meu bisavô morreu afogado na chuva, mas nunca rezara para que a chuva caísse. Porém, enquanto crescia pelos anos, ouvia sua mãe e depois sua mulher a correr os dedos femininos nos terços fatigados de tanto rogar pelos pecadores, agora e na hora da morte amém. Os terços se rezavam sozinhos; as contas caiam no fio e as bocas de mãe e de mulher murmuravam palavras de reza.
Meu bisavô morreu afogado na chuva, mas naquele dia não choveu. Meu bisavô morreu de pedir, pelos dedos de sua mulher e de sua mãe, a fiar o terço, que voltasse a chuva que lhe molhou quando era ainda um menino e lhe deram um aquário sem paredes mas com peixinhos coloridos. Quando meu bisavô ainda tinha, ele mesmo, seu bisavô e quando ainda era um menino a brincar na chuva. Naquele dia ele nadou no rio, correu e pulou cercas, subiu em árvores, pescou um peixe e o comeu cru.
Meu bisavô morreu afogado na chuva. E foi o rio que choveu aquele dia. Meu bisavô mergulhou e o horizonte virou vertical, o rio choveu na sua cabeça como cachoeira de chuva rara e o afogou e o levou até o mar, que já escorria do céu. E quando chegou no mar, meu bisavô já tinha respirado toda a chuva do rio, em lembrança, e no mar ele foi foz. Foi.
Caveira de bois - "Morte e Vida Severina" em animação - Miguel Falcão |