31/05/2012

lata de ervilhas

a navalha de corte fino lento e frio
me dá beijos
de seu amor

.

ferrugem alaranjada que se somou em pequenos potes de mistura ferrosa
agora me parecem tão distinta maquiagem
que me preenchia os olhos
em ingênuo colorir:
ferrugem eram os olhos;
rangendo ao fugir dali.

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das latas todas que guardava Teresa para fazer vasos:
de latas de óleo para queimar o dom das flores
de latas de molho de tomate para molhar a macarronada de miojo
de latas de escapamento; a fugirem fuligens de fácil furto
a mais bonita era a lata que Teresa guardou
quando ainda não tinha nem um metro e meio
a lata que um dia guardou bolinhas de gude
clipes sapatinhos de boneca balas e pequenas flores
guarda hoje as moedas que Teresa guarda
porque Teresa não merece moedas
o seu ouro é a ferrugem.

.

No barbeiro, uma lata velha enferrujada em discretos círculos de laranja-doce guardavam das mais diversas navalhas de corte. Até mesmo tesouras e outros desses instrumentos de se cortar e ajeitar os cabelos do corpo. Uma pinça bem grande ficava pendurada entre a parte de dentro e a parte de fora.
Pinçava, de tempos em tempos, algo de dentro e colocava pra fora; daí depois pinçava de fora para mandar pra dentro.

Evidente que ficavam cabelos no chão e alguns fios até mesmo se aventuravam em entrar na lata avermelhada de seu ferro chumbo.

Não era um lugar daqueles muito limpos no que se diz a remoção constante e impecável dos resíduos. Eu, porém, nunca liguei muito pra os resíduos. Tenho um amigo que diria que é um lugar sujo. Desses que ele frequenta. Eu vou nos mesmos lugares que ele mas não vejo tanta sujeira. O fio é tão cabelo quanto o rabo de cavalo e a trança; e esses nada são mais do que chumaço desses fios agrupado.

Me incomodava um pouco fios soltos no chão, mas não os chumaços e mexas que eu vira cair ao corte da tesoura (im)precisa - pois variava pelo humor do barbeiro -.

Os fios desesperam de sua selvagem forma de não ficarem; eles ao varrer ou soprar logo saem; os fios são o que se tem de mais palpável sobre a geometria dos pontos; da exclusividade de se somarem juntos só dois pontos e nada mais- e daí a linha reta, interminável secção!- quando se encontram, em esplêndida divisão, mais inúmeros outros pontos desses dois - até que se toquem um ao outro como se fossem, ao invés de pontos (que são dois sendo mil) um só fio.

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as ervilhas,
comemo-las.

.

as latas de ervilha se abrem com facas
de toda espécie
se só tiver navalha, também serve:
serão as ervilhas a carne que se come na boca
do ferroso túnel cortante da comida que ao
salivar a mesma boca
lhe nauseia a talhar num céu decima da língua
desenhos vermelhos
a se fazer em túneis e depressões
a assassina biologia da
deglutição.

httpwww.revistavertical.com.braliados-contra-a-ferrugem



01/05/2012

nua

, deitada ao seu lado

. Até agora me vesti com palavras, olhares distantes e silêncio

... senti o vento leve entrar pela janela entreaberta, a denunciar o dia odiosamente feio que fazia lá fora. Não era nem um dia desses em que brota nostalgia do cinza e do claro do inverno, era no meio das estações, ninguém sabia ao certo dizer qual era o tempo: seu nome ou com quais cores pintava os céus. Mas estava frio, e foi o frio que me arrepiou todos os pelos

! Ali, eriçada em êxtase de medo e fragilidade, me virei para o outro lado; de costas pra você. 

(me-vi): sem blusa, as mamas rijas de only sixteen e o sutiã (preto com rendas que sempre colocava pra te ver) perdido no meio de umas meias sujas, suas

.

Estava ainda com a saia preta que eu tinha vindo até você. E quando me-olhei nela, virei de volta pra você, beijei seu pescoço, deitei no seu peito apalpando suas clavículas

"não há movimento da escápula que não mova as clavículas"

eu lembro de tudo, você querendo voar comigo. Vejo tão torto

Você tinha nome de anjo, tinha asas (?) ocultas talvez, pois lia poesia. Mas o quê...! Menina que fui, via em ossos deformados a ânsia de voar, asas de penas presas por musculatura tensionada em despir – outras –  pois você só mostrava os pés

Das suas palavras, de seus amigos, de sua brilhante mente obscura, você mostrava só os pés; mas neste dia você estava de peito nu, escápulas e clavículas

; agora me lembro melhor. Eu também me esqueço, porque não vejo nada além de mim.

E me-vejo, a me-despir de novo, sem ver o peito do outro.

Isso tudo porque é de olhos bem fechados; por trás. Como um sonho ruim, as imagens suspensas, num rápido movimento que nunca aconteceu

Aqui estou, ao seu lado, de novo. Em sua cama tem uns adesivos de chiclete, coisas de criança. Eu não uso mais renda, se-perdeu n'algum canto d'um delírio ridículo. E tiro minhas meias sujas que cobrem palavras tortas sobre dias odiosamente bonitos – para outros – sobre o frio que na verdade é você, do outro lado da cama.

*

Graziela C. Drago K. Zeligara

escrito em maio de 2012 - editado em dezembro de 2021


Alyssa Monks - welcome to - óleo sobre linho (2005) - https://www.alyssamonks.com/2005-2009/