18/10/2012

História pra boi dormir

Meu bisavô morreu afogado na chuva. De tanto rezar a chuva que já dormia no seco fundo das raízes, profundas, enterradas na terra seca e veladas pela esperança do que viria dos céus, de tanto rezar para a chuva que molhasse os dois pés de laranja do sítio de portas de madeira apodrecida; de toda essa reza, brotou no céu um pé d'água que vertia pesadas gotas de água como frutos a estourar no chão e os frutos faziam a terra chorar em alagamentos de gozo. Os frutos a estourar no peito de meu bisavô, a banhar em lágrimas as profundas raízes secas fincadas em seu peito.

Meu bisavô morreu afogado na chuva, mas nunca rezara para que a chuva caísse. Porém, enquanto crescia pelos anos, ouvia sua mãe e depois sua mulher a correr os dedos femininos nos terços fatigados de tanto rogar pelos pecadores, agora e na hora da morte amém. Os terços se rezavam sozinhos; as contas caiam no fio e as bocas de mãe e de mulher murmuravam palavras de reza.

Meu bisavô morreu afogado na chuva, mas naquele dia não choveu. Meu bisavô morreu de pedir, pelos dedos de sua mulher e de sua mãe, a fiar o terço, que voltasse a chuva que lhe molhou quando era ainda um menino e lhe deram um aquário sem paredes mas com peixinhos coloridos. Quando meu bisavô ainda tinha, ele mesmo, seu bisavô e quando ainda era um menino a brincar na chuva. Naquele dia ele nadou no rio, correu e pulou cercas, subiu em árvores, pescou um peixe e o comeu cru.

Meu bisavô morreu afogado na chuva. E foi o rio que choveu aquele dia. Meu bisavô mergulhou e o horizonte virou vertical, o rio choveu na sua cabeça como cachoeira de chuva rara e o afogou e o levou até o mar, que já escorria do céu. E quando chegou no mar, meu bisavô já tinha respirado toda a chuva do rio, em lembrança, e no mar ele foi foz. Foi.
Caveira de bois - "Morte e Vida Severina" em animação - Miguel Falcão

31/05/2012

lata de ervilhas

a navalha de corte fino lento e frio
me dá beijos
de seu amor

.

ferrugem alaranjada que se somou em pequenos potes de mistura ferrosa
agora me parecem tão distinta maquiagem
que me preenchia os olhos
em ingênuo colorir:
ferrugem eram os olhos;
rangendo ao fugir dali.

.

das latas todas que guardava Teresa para fazer vasos:
de latas de óleo para queimar o dom das flores
de latas de molho de tomate para molhar a macarronada de miojo
de latas de escapamento; a fugirem fuligens de fácil furto
a mais bonita era a lata que Teresa guardou
quando ainda não tinha nem um metro e meio
a lata que um dia guardou bolinhas de gude
clipes sapatinhos de boneca balas e pequenas flores
guarda hoje as moedas que Teresa guarda
porque Teresa não merece moedas
o seu ouro é a ferrugem.

.

No barbeiro, uma lata velha enferrujada em discretos círculos de laranja-doce guardavam das mais diversas navalhas de corte. Até mesmo tesouras e outros desses instrumentos de se cortar e ajeitar os cabelos do corpo. Uma pinça bem grande ficava pendurada entre a parte de dentro e a parte de fora.
Pinçava, de tempos em tempos, algo de dentro e colocava pra fora; daí depois pinçava de fora para mandar pra dentro.

Evidente que ficavam cabelos no chão e alguns fios até mesmo se aventuravam em entrar na lata avermelhada de seu ferro chumbo.

Não era um lugar daqueles muito limpos no que se diz a remoção constante e impecável dos resíduos. Eu, porém, nunca liguei muito pra os resíduos. Tenho um amigo que diria que é um lugar sujo. Desses que ele frequenta. Eu vou nos mesmos lugares que ele mas não vejo tanta sujeira. O fio é tão cabelo quanto o rabo de cavalo e a trança; e esses nada são mais do que chumaço desses fios agrupado.

Me incomodava um pouco fios soltos no chão, mas não os chumaços e mexas que eu vira cair ao corte da tesoura (im)precisa - pois variava pelo humor do barbeiro -.

Os fios desesperam de sua selvagem forma de não ficarem; eles ao varrer ou soprar logo saem; os fios são o que se tem de mais palpável sobre a geometria dos pontos; da exclusividade de se somarem juntos só dois pontos e nada mais- e daí a linha reta, interminável secção!- quando se encontram, em esplêndida divisão, mais inúmeros outros pontos desses dois - até que se toquem um ao outro como se fossem, ao invés de pontos (que são dois sendo mil) um só fio.

.

as ervilhas,
comemo-las.

.

as latas de ervilha se abrem com facas
de toda espécie
se só tiver navalha, também serve:
serão as ervilhas a carne que se come na boca
do ferroso túnel cortante da comida que ao
salivar a mesma boca
lhe nauseia a talhar num céu decima da língua
desenhos vermelhos
a se fazer em túneis e depressões
a assassina biologia da
deglutição.

httpwww.revistavertical.com.braliados-contra-a-ferrugem



01/05/2012

nua

, deitada ao seu lado

. Até agora me vesti com palavras, olhares distantes e silêncio

... senti o vento leve entrar pela janela entreaberta, a denunciar o dia odiosamente feio que fazia lá fora. Não era nem um dia desses em que brota nostalgia do cinza e do claro do inverno, era no meio das estações, ninguém sabia ao certo dizer qual era o tempo: seu nome ou com quais cores pintava os céus. Mas estava frio, e foi o frio que me arrepiou todos os pelos

! Ali, eriçada em êxtase de medo e fragilidade, me virei para o outro lado; de costas pra você. 

(me-vi): sem blusa, as mamas rijas de only sixteen e o sutiã (preto com rendas que sempre colocava pra te ver) perdido no meio de umas meias sujas, suas

.

Estava ainda com a saia preta que eu tinha vindo até você. E quando me-olhei nela, virei de volta pra você, beijei seu pescoço, deitei no seu peito apalpando suas clavículas

"não há movimento da escápula que não mova as clavículas"

eu lembro de tudo, você querendo voar comigo. Vejo tão torto

Você tinha nome de anjo, tinha asas (?) ocultas talvez, pois lia poesia. Mas o quê...! Menina que fui, via em ossos deformados a ânsia de voar, asas de penas presas por musculatura tensionada em despir – outras –  pois você só mostrava os pés

Das suas palavras, de seus amigos, de sua brilhante mente obscura, você mostrava só os pés; mas neste dia você estava de peito nu, escápulas e clavículas

; agora me lembro melhor. Eu também me esqueço, porque não vejo nada além de mim.

E me-vejo, a me-despir de novo, sem ver o peito do outro.

Isso tudo porque é de olhos bem fechados; por trás. Como um sonho ruim, as imagens suspensas, num rápido movimento que nunca aconteceu

Aqui estou, ao seu lado, de novo. Em sua cama tem uns adesivos de chiclete, coisas de criança. Eu não uso mais renda, se-perdeu n'algum canto d'um delírio ridículo. E tiro minhas meias sujas que cobrem palavras tortas sobre dias odiosamente bonitos – para outros – sobre o frio que na verdade é você, do outro lado da cama.

*

Graziela C. Drago K. Zeligara

escrito em maio de 2012 - editado em dezembro de 2021


Alyssa Monks - welcome to - óleo sobre linho (2005) - https://www.alyssamonks.com/2005-2009/






04/04/2012

Quando a Porta fica aberta muito Vento entra ou Mãinha, Esqueci a Chave!

A porta estava aberta. Entravam muitas pessoas, entravam cães felizes por não entrarem pelo lugar dos cães entrarem, entravam insetos intrometidos e incertos espíritos de inspiração.

Da mesma forma, como entrava essa multidão, se acotovelando e empurrando; uma outra massa amontoada de chapéu, travesseiro, sapato, pneu, cérebro e falo saía desesperada, e me deixava, a mim, a ver esse louco trânsito, atravessar-me como em duas ser apenas essa que voz fala, ao testemunhar a ida e vinda de tais entidades.

E eu permanecia bem enciminha do batente.
era quase a fechadura.
Mas não me fechava, não; maldição! Toda água que transbordava de lá me banhava de cá e ainda escorria pelos meus pés que deveriam, de alguma forma, dividir algo entre dentro e fora.
Chegou um dia, e eu mesma no tempo de desembarque, fui-me de mim. já não de me morava mais;

Quando voltei,
a porta estava tão fechada!
tentei das chaves que guardava no colar que carregava no pescoço como amuleto, mas compradas no chaveiro sem fazer forma, dificilmente abririam qualquer coisa.
gritei, "mãaaaaaaaaaaaaaaaainhê! joga a chave!"
e por muito tempo, não encontrei minha mãe. a mãe estava quietinha, sentada no tapete, perto de uma caixa de madeira, lendo umas cartas antigas. ela via várias cartas de amor,
de amores que outros imaginaram nela e talvez até amaram nela, mas ela mesma só sonhara com o amor da carta dos outros, mas nunca conheceu o amor dos outros não.
e quando a minha mãe percebeu que ela não amava ninguém e que tudo que ela sabia no mundo, era amar; e que ela guardava os papeis bonitos pr'um dia escrever uma carta bonita, que deixava de dar beijos n'uma pessoa muito querida para prolongar o beijo dentro de si, ela sabia que todo esse amor que ela guardava, ela sabia que ia morrer numa caixa de madeira.
e então, minha mãe chorou.
minha mãe chorou demais porque sabia que amava e queria amar mais ainda, queria amar pra fora tudo que já amava dentro dela; minha mãe, de dentro de mim, gritou:

filha arranca essa chave do seu peito, 
o que você carrega é ouro e lamento
arranca essa chave minha filha
e encontra suas raízes no vento
corre, filha! agora que se faz como um espeto
o botão de rosa que quer nascer em seu peito
corra, minha filha! agarra essa chave
gira baila grita e morde que de trás dessa porta
tem muito mais do que eu suspeito!

zeligarah


14/03/2012

às claras

: - você não consegue ser mais clara?

  - claro, sem problemas

Clarissa quebrou os ovos, separou a gema logo jogando as claras na frigideira com manteiga rala e uma colher de leite. Mexeu um pouco; esfregou pelos dedos uma pitada de sal e pôs tudo num prato pequeno. Ajeitou o prato entre as mãos e o soltou no chão (pisando levemente com o metatarso e dedos esfregando a textura na pele e depois limpando no tapete) dizendo:

  - aqui, amor.

jeremy enecio