30/10/2014

geleia de água doce

meus olhos ouvem atentamente a música a se desenhar tranquilamente em meu corpo. ela traça linhas circulares ligando todas as minhas experiências minhas infâncias e minha velhice que rodopiam todas juntas num cinema invisível. Sinto tanta saudade. essa música despeja tinta vermelha nas minhas veias claras, torna vermelho o meu sangue falsificado, torna os meus olhos num arco-íris difuso, torna minhas mãos em ondas vacilantes que dançam quietas o ritmo cobiçado da minha existência cambaleante; essa música me faz lembrar de todo o passado que não vivi e transpõe nesse presenteado momento que está distante de toda cronologia matemática a distância ela mesma; essa música me lembra de respirar lentamente, me faz querer me embriagar de ar, de água; que inunde minhas células e que elas implodam num êxtase de imensa inspiração; que regue minha sede; que me banhe e refresque a pele quente; que me consagre neste ordinário momento que tento prolongar em palavras E de repente Toda a água me envolve, a primeira gota como lágrima e agora mergulho nessa profunda poesia e me esqueço novamente de que preciso respirar. a água me alimenta como àqueles seres que são exclusivamente marinhos e vivem de filtrar a água. pois essa água que me emerge é uma água claríssima, transpassada pela luz do sol, é uma água sólida, é uma montanha de água, é uma clareira líquida, é mercúrio translúcido, da mais sinuosa densidade e ainda assim não é uma água pura. nela nadam tantos elementos químicos e pequenas vidas que preciso abrir os meus poros como quem abre a porta de casa para que entrem pessoas queridas; pois quando a água entrar e também todas as pequenas vidas que ali vivem, eu vou olhar bem para cada pequena coisa, vidas e mortas, e catá-las uma a uma como amoras. depois vou juntar todas, lavá-las bem (porque ainda que eu tenha olhado bem meus olhos são falhos) e cozinhá-las por horas e horas para fazer um doce de comer com pão na manhã.

Mark Mawson

22/04/2014

canguru

estava preparando um frango para assar quando me lembrei do meu avô depenando uma coitada que havia acabado de estrangular. eu tirava as vísceras de outro filhote; nunca se sabe se o frango é menino ou menina, mas é uma criança, todos sabem isso. e eu preparava o frango para assá-lo e comê-lo. e eu fazia isso porque precisava me alimentar e precisava me alimentar para crescer. na verdade meu tamanho já é aquele que vou ter para o resto da vida e, fisiologicamente, eu praticamente não vou mais crescer. cheguei ao fim da marca na parede; agora só posso ter a esperança de decrescer até que eu possa me esconder debaixo da mesa novamente, para comer a pele do frango que minha avó cozinhou.

e já quando eu temperava o frango e eu pensava nessas coisas, me veio a imagem de um canguru entre essas ideias... um canguru, daqueles que pulam e têm bolsas na barriga... e fiquei pensando que a forma dos cangurus é parecida com a de um frango, assim, que se um anjinho tivesse moldado um canguru numa nuvem talvez eu visse um frango mesmo, porque os dois teriam aquele formato de uma coxinha com  perninhas e bracinhos; porém essa ideia me intrigou muito.

daonde raios eu pensei e canguru? porque me surgiu essa ideia enquanto eu cozinhava meu frango? eu só tinha pensado em sua semelhança depois de pensá-lo... e enquanto me perguntava os porquês desse canguru ter aparecido eu me esqueci de como temperava o frango e comecei a por outros temperos que não faziam parte da minha receita, fui até o jardim e peguei um punhado de grama e joguei em cima que nem eu fazia nas brincadeiras de cozinha e depois liguei o fogo e fiquei admirada de ver o fogo e depois que eu coloquei o frango no fogo eu sentei e cochilei

e então encontrei o canguru e eu era criança e falei com o canguru disse para ele que ele era muito parecido com frango e ele disse que ele não tinha asas daí falei que eu nunca tinha visto um frango o bichinho só frango que a gente come no sábado daí ele me disse que frango é só a comida do sábado mesmo que não é bichinho não, que só tem a galinha e o galo e o pintinho mas no fim ele achou muita graça de eu ter comparado ele com uma comida já que pessoas (pelo menos no brasil) não comem cangurus e então ele também ficou um pouco aliviado e me convidou para dar uma volta dentro da sua bolsa que fica na barriga como se eu fosse seu filhote eu fiquei muito feliz e pulei para dentro da bolsa e ele deu um pulo e nesse pulo quando ele tocou o chão eu fui engolida pela bolsa e de repente eu não existia mais; mas eu ainda pensava no canguru e aos poucos fui percebendo que estava sonhando e acordei

depois disso tirei o frango do fogo e daí me dei conta da grama e me achei muito estúpida por fazer essas coisas que eu já não tenho mais idade de fazer e me senti mais estúpida ainda por não ter mais idade de fazê-las. eu não comi o frango e voltei a dormir para encontrar o canguru de novo mas quando acordei eu não tinha sonhado nada.

Tjumpo Tjapanangka-Kangaroo dreaming (1994)